quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

[FARJ] A transformação social construímos no agora – Prática política, ética e estilo militante

Retirado de: http://anarquismorj.wordpress.com/2014/01/21/a-transformacao-social-construimos-no-agora-pratica-politica-etica-e-estilo-militante/

“Para nós a importância maior não reside naquilo que se consegue, pois conseguir tudo o que queremos significaria que todos aceitassem e praticassem a anarquia, o que não será feito em um dia nem por meio de um simples ato insurrecional. O importante é o método com o qual se consegue o pouco ou o muito.”

Malatesta

“A esquerda tradicional tem sido sectária, dogmática e tem frequentemente ignorado a realidade ao seu redor. Não acredito que os anarquistas, no geral, tenham sido muito melhores. É hora de dar o exemplo. Devemos apontar para a construção de espaços de discussão e mudar os hábitos maléficos em nosso movimento, que não contribuem com o debate e que mais entorpecem o desenvolvimento do necessário espírito crítico que o movimento revolucionário tanto necessita para fazer frente às difíceis tarefas de regeneração social que temos adiante.”

José Antonio Gutiérrez Danton


Para Malatesta cada fim requer seus meios, e se lutamos por um fim diferente do sistema de dominação e exploração capitalista os meios para atingi-lo também devem ser diferentes. Nesse sentido, entendemos como ética e estilo militantes os valores que conduzem nossa prática política cotidiana, em permanente diálogo com a realidade e em coerência com nosso método e com nossa concepção de trabalho. O germe de uma sociedade mais justa, igual e livre de exploração e dominações está na maneira como atuamos no “agora”, e isso não pode ser deixado pra depois. Está na forma como nos organizamos, por meio do federalismo, da autogestão e da ação direta. Está na intenção que damos a nossas práticas e às relações nos meios social e político; com os setores populares, com outros(as) militantes e companheiros(as) e na relação entre organizações políticas. O que equivale a dizer que o estilo militante é a busca da coerência entre as práticas do(a) militante, e do conjunto da militância, com os princípios, métodos e a linha política de uma organização.

Além de definir um programa estratégico com propostas concretas de intervenção na realidade, uma organização anarquista deve buscar uma prática política consequente com um determinado estilo militante, que servirá como elemento fundamental para a construção do poder popular e da transformação social. A prática também é ferramenta de propaganda e contribui para que se forme opinião favorável à organização, uma vez que é na vivência da luta e no convívio com os(as) militantes que se constrói cumplicidade no trabalho de base e novos(as) companheiros(as) e apoiadores(as) vão se aproximar.

É importante pontuarmos que não idealizamos um ser humano perfeito, muito menos um tipo de militante infalível. Os mais diversos problemas e contradições vão estar presentes nas dinâmicas das lutas ou nos processos revolucionários, e é nos organizando para superá-los, ou reduzi-los ao máximo, que avançamos. Há inúmeros exemplos, contemporâneos ou históricos, onde a proposta anarquista contribuiu para a organização e os embates pelas demandas dos trabalhadores e trabalhadoras. Pois nossa convicção ideológica se dá pela prática, nossa teoria é para atuar na realidade e nosso programa é fruto das lutas cotidianas.

Errar e trabalhar para corrigir os erros nutre nosso aprendizado e gera acúmulo político e amadurecimento. Também é fundamental sabermos fazer a crítica fraterna ao(à) companheiro(a) quando é necessário, e termos humildade para assumir quando erramos, fazer a autocrítica e nos esforçar para mudar nossa conduta. Nada de fazer “vista grossa” ou “passar a mão na cabeça” quando se identifica um problema relativo à prática de algum(a) companheiro(a). Quando os(as) militantes e a organização se omitem de encarar estes problemas, e não os pautam nas instâncias coletivas adequadas, pode-se gerar uma “panela de pressão” que poderá minar a relação orgânica, prejudicar o trabalho de base e gerar desentendimentos que, de outra forma, poderiam ser evitados.

Assim, o exercício da crítica e do debate devem ser encarados como importantes ferramentas organizativas, postas a serviço da prática e tendo esta também como ponto de partida, seja nos níveis político ou social. Não a crítica como mero exercício intelectual, o debate pelo debate ou com o objetivo único de mudar a consciência de cada indivíduo. Pois não é simplesmente a mudança de consciência das pessoas que altera a realidade, mas é na construção de um determinado sujeito de transformação social nos processos cotidianos de luta contra o sistema de dominação e exploração. Esses sujeitos (negros, camponeses, favelados, estudantes, jovens, indígenas, mulheres etc.) vão se incorporando à organização, trazendo suas experiências e lutas.

Sabemos que o processo de identificar e mudar as práticas com que somos formatados(as) pelo sistema de opressão e dominação não é algo que ocorre da noite para o dia. Mas devemos estar atentos para não agirmos de maneira egoísta e vaidosa ou reproduzir atitudes preconceituosas, sexistas, machistas, homofóbicas ou outras formas de opressão e autoritarismos com os(as) companheiros(as). E quando isso ocorre o coletivo deve ajudar o(a) companheiro(a) a reconhecer e mudar sua conduta, mas considerando sua realidade e suas limitações, sem querer crucificá-lo(a), caricaturá-lo(a) ou exigindo dele(a) uma “pureza” impossível na vida real.

Também é importante saber motivar aquilo que o(a) militante tem de positivo, reconhecendo as diferentes potencialidades, temperamentos e singularidades. Estimular nele(a) o exercício da delegação, a iniciativa, a participação e o posicionamento nas instâncias coletivas. Saber ouvir e saber debater, mesmo diante das posições divergentes, fazendo sempre esforço para se chegar aos acordos coletivos sem fazer “cavalo de batalha”. Priorizar a construção coletiva em vez das práticas voluntaristas descoladas da estratégia, o que é diferente da capacidade de iniciativa de cada um para ajudar naquilo que for possível. Como também prezarmos pela organicidade em vez das relações e estruturas políticas informais, de caráter personalista ou paternalista, o que pode dar margem para desigualdades e manipulações políticas no interior do coletivo. Evitar o personalismo é fortalecer as estruturas coletivas e ter claros os critérios de atuação para todos(as).

Nos diferentes níveis de atuação, o(a) militante deve entender que sua prática política, além de ser o “rosto” de sua organização, é também referência para os outros, positiva ou negativamente. Por isso é importante cultivarmos o espírito de fraternidade e apoio mútuo nos espaços de trabalho, estimulando e promovendo a máxima confiança, ética e camaradagem entre os(as) companheiros(as). E, principalmente nos trabalhos sociais, não ser arrogante achando que vai levar a “verdade” ao povo, mas saber primeiro ouvi-lo e aprender com a sabedoria,  realidade e cultura populares.

Espera-se do(a) militante uma atitude atenta ao conjunto de sua organização para além de seu trabalho específico, contribuindo e buscando soluções para organizar e articular os trabalhos nos diferentes espaços em que se inserem, ajudando na construção de uma política onde os campos de luta em que atua a organização dialoguem cada vez mais. Que saiba equilibrar sua participação ao contribuir e comprometer-se tanto com as tarefas de funcionamento interno da organização quanto com as tarefas externas, relativas aos trabalhos de base. Agindo com responsabilidade e comunicar ao coletivo quando da impossibilidade de cumprir determinada tarefa. Pois ter imprevistos e problemas é normal, mas a falta de comunicação prejudica a organicidade. Por outro lado, estar sobrecarregado de tarefas também não significa que a política está avançando, mas que talvez não estejamos atuando com planejamento ou estabelecendo prioridades.

A formação é outro elemento importante, principalmente quando se pensa numa política articulada com as demais atividades internas da organização e preocupada com o acolhimento do(a) militante e dos recém ingressos junto ao trabalho de base. Complementada com uma formação teórica que vai fortalecer e qualificar a prática do(a) militante, dotando-o(a) das ferramentas necessárias para produzir e reproduzir as propostas da organização. Também, todo(a) aquele(a) que recém ingressa deve compreender que o processo não recomeça do zero naquele momento, e que ele(a) irá contribuir da melhor maneira possível para multiplicar força num processo que já vem caminhando com outros(as) companheiros(as) e que tem seus acúmulos. Todos os militantes constroem a organização mas devem saber respeitar as deliberações coletivas e atuar a partir destas.

No nível social a atuação nas bases nos ensina muitas coisas, seja em movimentos sociais do campo, da cidade, nos locais de trabalho, de estudo ou em iniciativas de resistência em favelas e periferias. Devemos contribuir para que os espaços coletivos que ajudamos a construir sejam agradáveis e estimulem a participação de todos. Uma vez que a dominação e a exploração capitalistas trabalham para afastar o povo da participação política, colocando a via eleitoral e o individualismo como referenciais, em nossos trabalhos o exercício da política e da militância não deve parecer às pessoas como algo chato ou coisa só para “profissionais”, distante de sua realidade. Uma reunião ou assembléia de base esvaziada indica que podemos estar fazendo alguma coisa errada. Um determinado estilo militante aplicado ao trabalho de base também pode estimular pedagogicamente, se proporciona condições de maior participação nos espaços de deliberação, considerando as realidades e limitações de cada um. Por exemplo, mesmo com uma modesta experiência no campo comunitário, podemos dar o testemunho de que um trabalho focado estrategicamente e com base numa relação de igualdade, respeito e estímulo à participação política teve como consequência a aproximação de pessoas em distintos níveis de participação, desde o mais pontual até o mais orgânico. Aos poucos vão se estabelecendo importantes relações de identidade com nossas propostas, sabendo valorizar as iniciativas populares de resistência e articular politicamente os trabalhos.

Ao mesmo tempo, no nível político também devemos prezar por uma ética e estilo militante nas relações com outras organizações políticas e correntes da esquerda. A atuação em espaços mais amplos e de diversidade ideológica como fóruns, campanhas e mobilizações nos colocam outros desafios. Nossas propostas não são as únicas e não vamos nem queremos estar sozinhos nos processos de luta. Para fazer frente aos poderosos e opressores muitas vezes vamos estar compondo com outros setores da esquerda construindo consenso a partir do que há de acordo comum, o que não significa abandonar nossos princípios. Seria muito cômodo compormos politicamente apenas com quem temos concordância ou afinidade ideológica, mas isso seria adotar o principismo como política de atuação, o que não faz avançar a luta nem enriquece nossas experiências.

É comum passar por situações de desacordo, divergências políticas ou falta de conduta ética por parte de indivíduos ou grupos, mas para além do denuncismo, nosso foco deve estar em divulgar e fazer avançar nossas propostas. Precisamos saber diferenciar os inimigos de classe dos adversários ideológicos. Sem isso corremos o risco de atuar como um “rolo compressor” nos espaços políticos, reduzindo-os à espaços de disputa ou de “captura” de militantes apenas.

Devemos saber encaminhar as divergências com serenidade e evitar conflitos e polêmicas desnecessárias, diferenciando as divergências de princípios daquelas de estratégia ou tática e reconhecendo os méritos alheios. Antes de ser críticos, ser autocríticos. Defendemos o anarquismo com firmeza diante de ataques e calúnias, e fazemos a luta ideológica quando preciso, mas colocando nossas posições e opiniões sem dogmatismo e contextualizando nossas críticas em vez de generalizá-las a toda uma corrente, grupo ou ideologia. Há discussões que devem ser feitas e as divergências muitas vezes vão existir, mas que se façam sem sectarismos ou dogmatismos.

Publicamente, devemos saber nos posicionar sem virulência febril, que faz parecer que estamos mais preocupados em afirmar nossas posições ou competir com outra corrente ou organização do que em nos ocuparmos dos problemas cotidianos dos(as) oprimidos(as) e explorados(as). Não se convence ou se persuade simplesmente com violência na linguagem ou falando alto. Vaidade teórica e ideológica são faces da mesma moeda. E sobretudo hoje devemos ficar mais atentos com as ferramentas de comunicação virtual e as redes sociais, que por sua própria característica de funcionamento, acabam facilitando e estimulando esse tipo de prática nociva.

Desse modo, ética e estilo militantes não são entendidos por nós como dogmas, mas como concepções de trabalho a serem encarnadas em nossas práticas políticas e, dessa forma, buscam atuar as organizações da Coordenação Anarquista Brasileira (CAB). E nossa militância nos setores de luta do campo e comunitário, em trabalhos de produção coletiva, grêmios estudantis, pré vestibulares, educação popular e cultura, como nas mobilizações e fóruns populares de articulação, buscamos estimular e influenciar, mas também somos modificados no cotidiano das lutas. E é inserida nessas dinâmicas sociais que uma base ética e uma concepção de estilo militantes também se forjam e se qualificam enquanto frutos de amadurecimento político e reflexão nas lutas cotidianas.

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