segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Ocupação Guarani-Kaiowá: Ação-Direta, Autonomia, Autogestão e Solidariedade. Leituras de uma militância anarquista

Ocupação Guarani-Kaiowá: Ação-Direta, Autonomia, Autogestão e Solidariedade.
Leituras de uma militância anarquista.

Encontro entre indígenas Guarani-Kaiowá e moradores da Ocupação urbana Guarani-Kaiowá
Agosto de 2014, Frente de Luta Por Moradia do COMPA

Desde meados de outubro do ano passado, o COMPA acompanha a luta da Ocupação Guarani-Kaiowá, situada em Contagem, Região Metropolitana de Belo Horizonte (MG). A Ocupação existe desde 09 de março de 2013 e conta com 150 famílias que ocuparam um terreno que até então abrigava um enorme matagal entregue às moscas da especulação imobiliária. O terreno, que encontrava-se penhorado, cuja empresa proprietária é devedora fiscal (Construtora Muschioni), fica na região do Ressaca, uma região administrativa do município de Contagem que conta com bairros que, em geral, não têm perfil de bairros de alta renda da cidade.

OS PRINCÍPIOS E AS CONTRADIÇÕES DO SISTEMA DE ESTADO E CAPITALISTA

Estamos juntos com a luta da ocupação por meio da Frente Terra e Autonomia, FTA, que é a frente que a nossa militância constrói junto a moradores e mais apoiadores externos e que existe há aproximadamente sete meses. A FTA consiste em uma frente independente de ideologias e organizações políticas que se articula em torno de princípios determinados para atuar nas lutas urbanas da cidade, atualmente com foco na luta por moradia. Compartilhamos de princípios como anticapitalismo, autonomia, autogestão, ação-direta, solidariedade, apoio-mútuo, horizontalidade, autodisciplina e independência política. A FTA é uma articulação muito cara para a militância do COMPA, por se tratar de uma iniciativa coletiva de caráter libertário e anticapitalista que tem como objetivo se inserir em lutas como a de moradia, que, para nós, além de uma luta digna é uma luta potencialmente revolucionária por contestar diretamente a propriedade privada – e o capitalismo.

Não somente pela contestação à propriedade privada, a luta por moradia, nas atuais condições políticas, econômicas e sociais, levantam outras reflexões importantes acerca de mais contradições do capitalismo de nosso tempo. A especulação imobiliária, a gentrificação das cidades, comercialização dos espaços comuns, a política neodesenvolvimentista do governo federal, que garante o crédito, mas não para a moradia de pessoas realmente pobres – e que tampouco distribui a riqueza, e até mesmo a questão da mobilidade urbana ficam em evidência quando o povo se organiza e cumpre com suas próprias mãos a árdua tarefa de conseguir uma casa própria nos dias de hoje.

Além da questão econômica, a crítica ao Estado e seu papel na sociedade se desenvolve de modo mais simples e até mesmo prático quando se tem esse perfil de luta social, basta percebermos como o Estado e suas instâncias tratam as ocupações urbanas. Repressão policial e falta de diálogo do poder público com o povo pobre que ocupa os terrenos ociosos são posturas que evidenciam o caráter de classe que há – e que é inerente – no Estado e em qual classe ele se insere. Essas e outras questões que se levantam na órbita da luta por moradia estão intimamente ligadas com os conceitos que os princípios da FTA buscam e resgatam, que se complementam e se constituem no dia-a-dia da luta.

Não pretendendo esgotar um debate minucioso sobre cada princípio, temos neste texto uma avaliação de como estes princípios estão inseridos na luta por moradia daquelas 150 famílias, em seus espaços coletivos e de vivência, sejam as assembleias, as atividades, as manifestações ou mesmo os encontros espontâneos nos espaços comuns da comunidade, ainda que muitos mantenham-se despercebidos. A prática política coletiva que se desenvolve na ocupação é predominantemente autogestionária, autônoma, coletivista e de ação-direta. O que se percebe é que a consciência geral da assembleia se guia pela via da combatividade, ação-direta e coletividade, mesmo que em determinados assuntos ainda sejam orientados pela coordenação, como, por exemplo, quando é preciso tomar medidas mais estratégicas sobre momentos que requerem cautela e experiência (como uma negociação com o poder público ou algum ato mais elaborado). Coordenação tal que é aberta e horizontal, sendo composta também por alguns moradores e apoiadores com mais experiência nos meandros da luta por moradia.

A MORADIA NÃO MAIS COMO PAREDES, TETO E CERCAS

O senso de comunidade muito se desenvolveu com os moradores da ocupação, que, em sua maioria, já moravam na região do Ressaca. A concepção da moradia construída no curso da luta da ocupação saltou, para muitas famílias, do âmbito individual e hoje situa-se no coletivo. Há uma compreensão majoritária de que moradia não é simplesmente ter posse de um lote cercado, mesmo que conquistado por meio da ocupação; a visão da moradia como todo o ambiente que envolve a sua conquista, defesa e garantia de sua casa se amplia cada vez mais. Ou seja, há um entendimento de que o interesse, cuidado e a construção permanente do seu ambiente de moradia, no caso a comunidade, de forma ampla, horizontal e autogestionária, é o fator preponderante para que o seu teto seja garantido, tornando-se esse o legítimo significado de “moradia”. Nesse sentido, a importância e necessidade da assembleia, das tomadas de decisões e trabalhos coletivos se faz real. Isso pode ser bastante claro se levarmos em conta a necessidade de se organizar para lutar contra o despejo, por exemplo, mas a questão vai além desse ponto, que é de certo modo imediatista: há um avanço na consciência da construção coletiva do viver, tendo a compreensão dessa construção coletiva como fundamento para o sentido do que significa moradia.

Desse modo, a organização comunitária passa a ser pautada como fundamental para o o processo diário da ocupação. Essa organização comunitária pode ser traduzida como uma expressão prática de Organização Popular, que se faz vital para estratégias de longo prazo que propõe uma transformação mais radical da sociedade, nas entranhas da organização das relações sociais (seja no ambiente de moradia, de trabalho, estudo, etc). Assim, nesse aspecto, os laços se estreitam mais entre os moradores, as decisões coletivas tornam-se mais legítimas e elaboradas, as condições de conquistas são fortalecidas, a consciência individual e comum dos moradores avança na pedagogia diária da luta e um terreno fértil para um mundo novo é semeado no agora.

Como um resultado subjetivo dessa pedagogia diária da luta, a moradia, podemos dizer, vem a ser entendida como um espaço de auto fortalecimento, apoio-mútuo e iniciativa coletiva, embora possa não ser propriamente uma conclusão de uma reflexão crítica profunda dos moradores. Entendida como tal, a preocupação com o espaço comunitário torna-se comum e natural, o que explica as várias mobilizações para o cuidado, a manutenção e a construção dos espaços coletivos da ocupação. E exemplos para essa preocupação e cuidado não faltam: a mobilização para o cercamento da área verde; a decisão e delimitação dos nomes das ruas; a construção de um espaço comunitário que acolhe as plantas, maquetes, fotos, textos, memórias da própria ocupação e da luta de moradia da Região Metropolitana de Belo Horizonte, além de guardar objetos e ferramentas coletivas; a preocupação com a limpeza da Praça Nelson Mandela (vulgo Pé de Manga); e mais recentemente, a construção de um palco e do Centro Social, que, com apoio externo de movimentos, organizações, estudantes e arquitetos, hoje vem realizando mutirões nos quais muitos moradores estão participando, dando na prática o verdadeiro sentido para a palavra “coletividade”. Tudo isso, importante destacar, proposto, criticado e decidido em assembleias pautadas na horizontalidade.

A ASSEMBLEIA PELA ORGANIZAÇÃO POPULAR

Mas a noção de comunidade ainda vai além do cuidado com o espaço comunitário. A mediação de conflitos que surgem entre moradores também se dá em assembleia. Interessante perceber que em bairros comuns tais práticas quase sempre não existem. A propósito, não são realizadas assembleias na maioria dos bairros comuns. Tal fato é um exemplo simples da diferença de organização e proposta de vivência entre o atual modelo vigente – capitalista, individualista, competitivo e munido de preconceitos – e o modelo construído pela ocupação – que tende muito mais ao coletivista, solidário, de apoio-mútuo e que, ainda que ainda existam muitos preconceitos, dá alguns passos rumo à desconstrução, morosa ou instantânea. Se trata de um avanço de consciência de resolver conflitos, pendências e outras quaisquer demandas no seu local de moradia, o que já mira um novo modo de fazer política e organizar a sociedade.

Ressaltar essas questões da Ocupação Guarani-Kaiowá não quer dizer que seja diferente em outras ocupações urbanas. O sentido deste texto é justamente de evidenciar esses pontos positivos das ocupações urbanas organizadas que sustentam, não tendo talvez esse objetivo determinado, alguns dos pilares de novas propostas de organização social, baseada no coletivo, e não no individual; baseada na solidariedade, e não na competição; na autogestão, ação-direta e independência, e não na dependência do Estado e da iniciativa privada; feita pelo povo, e não imposta ao povo.

A SOLIDARIEDADE

A questão da solidariedade é sempre um fator muito preponderante, mas isso não só na ocupação. O povo pobre, de modo geral, é muito mais solidário que o punhado de ricos que erguem suas fortalezas no Mangabeiras, Belvedere ou Nova Lima. Isso é notório: enquanto o pobre sente a dor e a necessidade do próximo como se fosse a sua (porque na maioria das vezes é a sua), e, assim, busca ajudar como pode, tendo apenas um pouco mais do que o necessário para sobreviver, sendo que o rico, com sua fortuna e sua ganância, se guia pelo lado contrário e tende a ser mais fechado, ambicioso e egoísta, colocando em cheque os modelos de sociedade propostos e estimulados pelo capitalismo. Pode até existir a filantropia, mas ela está longe de ser comparada com a solidariedade do povo oprimido para com ele mesmo. Se não há uma consciência de classe constituída entre os nossos, o que impede passos mais largos na luta contra a exploração e a dominação, há ainda uma solidariedade que muitas vezes é bonita de se ver e que há de ser resgatada, reivindicada e fortalecida para o avanço dessa consciência de classe.

Assim, basta que alguma companheira com seus vários filhos chegue em assembleia e peça algum apoio, prontamente os moradores interrompem a pauta que possam estar discutindo e buscam apoiá-la da melhor forma possível. Sendo uma companheira com seus filhos, ou algum morador que perdeu sua casa por algum motivo (incêndio, chuva etc.) ou qualquer outra pessoa que precise de ajuda, a assembleia não hesita em abraçá-la, praticando e dizendo aqui e ali, em alto e bom tom, palavras como “solidariedade” e “coletividade”.

E a solidariedade não se reduz ao aspecto territorial da ocupação, nas relações internas das famílias. Por se ter uma consciência de luta, várias famílias se voltam solidárias a outras lutas populares da cidade, sendo elas por moradia ou não. As expressões de solidariedade às Ocupações do Isidoro exemplificam isso muito bem: atualmente, três ocupações urbanas da Região Metropolitana de Belo Horizonte sofrem uma ameaça real de serem despejadas. Elas são formadas por 8 mil famílias e se situam na região da mata do Isidoro, norte da capital, conhecida como "Granja Werneck". No dia que houve a iminência do despejo, no qual havia uma certeza de que seria realizada a operação policial, a ocupação se levantou às 5h e fez um ato na Praça São Vincente, um cruzamento com um enorme fluxo de trânsito, evidenciado o perigo do massacre que se anunciava e demonstrando, por meio da combatividade e ação-direta, toda solidariedade às ocupações. Não houve o despejo por uma ação do Ministério Público e pela mobilização de apoio às ocupações do Isidoro, e a Ocupação Guarani-Kaiowá teve um papel destacado nesse cenário.

Um outro exemplo de solidariedade com as demais lutas das e dos debaixo foi a recepção dos índios da tribo Guarani-Kaiowá na ocupação. A atividade colocou a luta da cidade e a luta do campo juntas em uma roda de debate que contou com uma ampla participação dos moradores da ocupação, que torcaram experiências de luta e resistência com os companheiros indígenas que historicamente vêm sendo perseguidos e atacados na região do Mato Grosso do Sul. O contato foi construtivo para a ocupação, que demonstrou mais uma vez sua solidariedade à causa indígina, reafirmando a origem da escolha de seu nome.

A AÇÃO-DIRETA, O AVANÇO POLÍTICO E A QUESTÃO DAS MULHERES

Soma-se a tais expressões de solidariedade e apoio-mútuo uma regular defesa da ação-direta e combatividade como ferramentas para a luta. O reconhecimento da importância das manifestações, das vigílias, do enfrentamento direto, o ânimo mobilizador e o posicionamento combatente são frutos dessa luta. Saber que a sua moradia será garantida com a luta política, enfrentando o executivo, judiciário e o capital é um passo para compreender os problemas sociais de modo mais amplo, obtendo a capacidade de perceber o problema comum, a raiz das desigualdades e das opressões, que é o capitalismo e suas estruturas de poder. Nesse sentido, surge uma real possibilidade de se afiar a crítica e entender a importância da união das lutas populares, desde entre as ocupações urbanas até entre outros movimentos sociais, por se tratarem de lutas oriundas das contradições do capitalismo e dos seus domínios. Moradores, portanto, passam a perceber a necessidade de se organizar para lutar para além da luta por moradia, mas por transformações maiores na sociedade a partir da organização popular.

Nesse contexto, há também um avanço pessoal de alguns moradores que de tanto se envolverem nos espaços de organização e mobilização da comunidade tornam-se mais engajadas, com uma capacidade mais elevada de crítica social e uma visão política menos embaçada e imediatista. Destaca-se, nesse ponto, a quantidade de mulheres que se levantam e se dispõe como tal. Fortes pela realidade que as incumbe, por precisarem trabalhar mais, resistir mais, por conta do machismo que ora lhes violenta fisicamente, ora lhes deixa sozinha com os tantos filhos para criar, são elas que constituem a maioria das pessoas que constroem a ocupação desde o início, levantam os barracões e tomam atitudes mais firmes e contundentes pela ocupação. Mesmo com o machismo, que atinge demasiado as mulheres negras e pobres, erguidas se dispõe e algumas tornam-se essas lideranças comunitárias. No caso dessa liderança comunitária feminina, existe ainda mais um panorama positivo no que se refere ao exemplo de força e disposição para as outras mulheres, tanto na luta por moradia, quanto na luta contra o machismo.

BREVES CONSIDERAÇÕES

Esses são alguns elementos apontados pela prática política da ocupação Guarani-Kaiowá que têm ligações com princípios da FTA, que o COMPA compartilha igualmente. Alguns deles têm um estreito laço com o cotidiano daquelas famílias, enquanto outros, a FTA busca forjar no dia-a-dia de sua luta junto à ocupação. Atenção, diálogo, debates, propostas, atividades, postura ética (saber ouvir e quietar o ego, ser companheiro e não pretensioso, vaidoso), são pontos cruciais para a absorção contínua e necessária da realidade da ocupação bem como para o exemplo, a fomentação e estímulo daquilo que propomos também compartilhar com a comunidade.

Norteados por essa ética libertária que nos guia pela base, na via autônoma, solidária e anticapitalista, seguimos companheira/os de aflições, embates, enfrentamentos, propostas e vitórias lado a lado com a ocupação, não nos furtando de sermos anarquistas, revolucionária/os, mas sem fugir dos nossos princípios tão caros que remam contra a ideologização e o aparelhamento do movimento social. A construção de Poder Popular se dá pela base, na luta popular organizada e independente: assim compreendemos a estratégia de Criar um Povo Forte para caminharmos conscientes, rumo à transformação social, contra o capital e as culturas de opressão impostas pelo capitalismo no dia-a-dia.

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